Páginas

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Máquinas de escrever e poesia

Quando em 1969 a Olivetti lançou a máquina de escrever Valentine, Ettore Sottsass e Perry King, os seus designers, apresentaram-na como a máquina de escrever que pudesse ser utilizada fora dos escritórios, para “acompanhar poetas amadores em calmos domingos no campo”.


É claro que a Valentine era tudo menos calma. Para além de ser provocatoriamente vermelha, portátil, fazia um barulho infernal como todas as máquinas de escrever. Mais ou menos infernal em função da fúria e do entusiasmo do escritor. A esta distância o som das máquinas de escrever parecem-nos também eles poéticos: as hastes com os tipos na ponta a movimentarem-se de cada vez que pressionávamos uma tecla, a campainha de avisava que tínhamos chegado ao fim da linha, o cilindro a rodar e a empurrar a folha para cima, o papel a soltar-se. Na altura, escrever pela noite fora, só com isolamento acústico. Mas a nostalgia faz isto às pessoas, passamos a achar belas coisas que eram perfeitamente mundanas. Volta e meia, ao pressionar o Shift ou o Caps Lock lembro-me com saudade de o fazer nas máquinas de escrever, mas com a diferença de que quando o fazia sentia o movimento do cilindro a subir. Quem nunca trabalhou com máquinas de escrever não associará as palavras Shift e Caps Lock ao seu sentido literal, nem os bits e bites andam pelos circuitos electrónicos a levantar cilindros.

Tive a minha primeira máquina de escrever aos 10 anos. Foi uma prenda de natal muito desejada. A máquina não era muito robusta, mas servia o seu propósito, o de brincar às poetisas-escritoras-editoras. Com mais duas amigas, tratámos de ocupar a cave da casa de uma delas e fundámos a “Cruzes Canhoto”. Foi brincadeira que ainda durou uns 2 anos – muito graças aos scones com que nos banqueteávamos nos intervalos da actividade editorial. Mais tarde passei a usar a máquina de escrever do meu pai, que não era tão bonita como a Valentine mas também era portátil. Creio que aconteceu às máquinas de escrever o mesmo que aos computadores: foram sendo substituídos por portáteis. Essa máquina, que herdei do meu pai sem que ele se lembre, ainda tenho guardada no sótão da minha mãe. Quando entrei para a Associação de Estudantes escrevíamos numa máquina eléctrica que fazia uns sons já diferentes das outras. Podia apagar sem ter de andar com frascos de tinta branca e um pincelinho na tampa. Também podia escrever em colunas, em negrito, e até tinha várias opções para o espaçamento das linhas. Há tempos encontrei alguns trabalhos dos primeiros anos da faculdade, escritos à máquina – que orgulho! Estavam tão bonitinhos. A verdade é que tive alguma dificuldade em adaptar-me ao funcionamento dos computadores: a enorme quantidade de opções e não ver como funcionava a máquina devem ter sido as principais razões da estranheza. Estava tão habituada à máquina de escrever que os meus primeiros trabalhos escritos em computador foram todos em letra de máquina.

 A Valentine chegou a ser fabricada em várias cores, tal como mais tarde, em 1998, seriam fabricados os iMac da apple. Era a mesma filosofia apresentada de uma outra forma, não eram as máquinas que saiam fora dos escritórios mas eram os escritórios como se estivessem fora deles mesmos.


 Em 2008, a estudantes da Universidade de Viena prestaram homenagem à Valentine recriando-a em forma de um pequeno computador portátil.



A apple voltou, há duas semanas atrás, a retomar a postura “poética”, desta vez com o iPad Air e ainda mais ao encontro do espírito Valentine. Basta ver o anúncio Your Verse, que utiliza o monólogo de John Keating (o personagem interpretado por Robbin Williams n’O clube dos Poetas Mortos) para perceber.



Mas os tempos são outros, mais pragmáticos talvez, e a reacção não se fez esperar: os criadores do site thedoghousediaries publicaram um gráfico que faz a sátira distanciando entre o uso lírico no anúncio e uso real do iPad.



 Hoje tropecei numa imagem, uma máquina semelhante a uma antiga máquina de escrever. Só que esta máquina não escreve, pinta. Parece-me ser uma impossibilidade técnica, mas, de qualquer modo, é como se o ciclo se fechasse: os calmos domingos no campo passam a ser a própria máquina.



Sem comentários:

Enviar um comentário